sábado, 6 de fevereiro de 2016

FÉ IMPLÍCITA X FÉ EXPLÍCITA EM CALVINO: UMA INTRODUÇÃO


Por Heber R. Bertuci


Uma das principais ênfases dos reformadores era que todos pudessem conhecer as doutrinas da Palavra de Deus. João Calvino (1509 – 1564), por exemplo, ensinava que a fé não devia ser implícita, mas explícita. Como entender a fé para que se possa adjetiva-la de implícita ou explícita? De modo geral, a fé pode ser entendida de duas maneiras que se completam: em primeiro lugar, é uma certeza que existe no coração do eleito de Deus. O autor de Hebreus diz que a fé é a “... certeza de coisas que se esperam”. (11,1a). O termo certeza aqui é hypostasis, que significa substância. Uma tradução para o verso é: “... a fé é a substancia de coisas que se esperam”. Segundo a linha dos reformadores, hypostasis não pode ser entendido com o sentido objetivo de substancia, mas indica o subjetivo de certeza. O termo indica, portanto, algo real, que espero, que Deus me assegura por sua Palavra que virá. “Se eu estou certo de algo, tenho certeza no meu coração. Esse é um conhecimento subjetivo porque está dentro de mim. Certeza, então, é uma qualidade subjetiva.” (Kistemaker, 2003, Hb 11,1, p. 435). Em segundo lugar, a fé é um conteúdo que indica quem é Deus e qual a sua vontade para tudo o que ele criou. Um dos Pais Apologistas, conhecido como Ireneu de Lion (130 – 202), fala da regula fidei (Regra de Fé) em sua exposição teológica. O termo grego correspondente ao latim regula é kanon, que dentre outros significados, quer dizer: padrão ou diretriz. A Regra da Fé, para Ireneu, é o padrão correto que é expresso na Escritura, no Credo Apostólico e na pregação da Igreja. Trata-se, portanto, de um conteúdo doutrinário. Na sua obra Demonstração da Pregação Apostólica, que também é considerada como o mais antigo Catecismo de Doutrina Cristã, Ireneu exorta: “Ora, pelo temor de qualquer coisa de similar, nós devemos manter inalterada a Regra da Fé e cumprir os mandamentos de Deus crescendo nele, temendo-o como Senhor, e amando-o como Pai.” (n. 3). Conforme vemos, desde o segundo século da Era Cristã que se pede que o povo de Deus mantenha inalterada a sua doutrina, a sua Regra da Fé ou conteúdo da fé.

Calvino (1509 – 1564), séculos depois de Ireneu (130 – 202), ensina que este conteúdo da fé não pode ser implícito. A fé implícita é aquela que leva o fiel a ter “... uma submissão inquestionável aos ensinos da Igreja sem que sejam realmente entendidos.” (Hoekema, 1999, p. 143). Este ato é próprio do catolicismo medieval. Ao comentar o texto de I Tm 1,1, em que Paulo escreve que é “... servo de Deus e apóstolo de Jesus Cristo, para promover a fé que é dos eleitos de Deus e o pleno conhecimento da verdade segundo a piedade”, Calvino diz que a conjunção kai, traduzida por “e”, liga a expressão “a fé que é dos eleitos de Deus” a “... o pleno conhecimento da verdade”. Paulo define que um dos aspectos da fé é o conhecimento da verdade e “... não está meramente distinguindo-a de opinião, mas daquela fé forjada e implícita inventada pelos papistas. Pois por fé implícita eles querem dizer algo destituído de toda luz da razão.” (1998a, p. 299). No comentário ao texto de Gl 1,8, em que Paulo escreve: “Mas, ainda que nós ou mesmo um anjo vindo do céu vos pregue evangelho que vá além do que vos temos pregado, seja anátema”, Calvino diz: “Que costume é esse de professar o evangelho sem saber o que ele significa? Para os papistas, que se deixam dominar pela fé implícita, tal coisa pode ser suficiente. Mas para os cristãos não existe fé onde não haja conhecimento.” (1998b, p. 22). [1]

Quem eram os papistas que Calvino (1509 – 1564) critica como os propagadores da fé implícita? Eram todos os que mantinham os dogmas e as doutrinas católicas e ensinavam os fiéis a obedecê-las inquestionavelmente, sem pesquisa. Contra eles, o reformador enfatiza a fé explícita: uma fé pesquisada, estudada e analisada; em síntese, uma fé bereana, conforme lemos em At 17,11: “Ora, estes de Beréia eram mais nobres que os de Tessalônica; pois receberam a palavra com toda a avidez, examinando as Escrituras todos os dias para ver se as coisas eram, de fato, assim.” Nas Institutas, Calvino deixa bem claro que a fé não é um mero assentimento aos mandamentos da Igreja, mas é uma resposta consciente e intelectual à mensagem da Escritura. Primeiro, ele diz: “Será que crer é isto, não entender nada, contanto que obedientemente submetas teu intelecto à Igreja? A fé está situada não na ignorância, mas no conhecimento, e, de fato, depende não só de Deus, mas também da vontade divina.” (III,II,2). Depois, ele ensina que não alcançamos a salvação abraçando como verdadeiro tudo o que a Igreja tiver pesquisado e determinado, “... mas por sabermos que Deus é nosso Pai benévolo, em virtude da reconciliação realizada por intermédio de Cristo, e que Cristo nos foi dado em justiça, santificação e vida.” (Ibid.). Este é o princípio calvinista de que a salvação vem de Cristo e não da Igreja visível. Ao comentar Rm 10,10: “Porque com o coração se crê para justiça e com a boca se confessa a respeito da salvação”, o reformador diz que Paulo “... indica que não é suficiente um homem crer implicitamente naquilo que não entende e tampouco procura entender, mas requer um conhecimento explícito da bondade divina, em que consiste nossa justiça.” (Ibid.). A “... fé repousa no conhecimento de Deus e de Cristo (Jo 17,3), não na reverência à Igreja.” (III,II,3). Portanto, o erro dos papistas é defender que estão corretos os que se satisfazem em apenas dar “... seu assentimento à autoridade e ao julgamento da Igreja. Como se a Escritura não ensinasse a cada passo que a inteligência está unida à fé!” (Ibid.).

No entanto, para Calvino (1509 – 1564) a fé pode ser chamada de implícita quando Deus não revelou determinado assunto em sua Palavra: Ainda nas Institutas, ele escreve: “Nós concedemos que a fé, enquanto peregrinamos por este mundo, seja implícita; não só porque até agora muitas coisas estão ocultas, mas porque, rodeados pelas trevas de numerosos erros, não compreendemos tudo.” (III,II,4). Mas, percebe-se que a fé neste sentido se torna implícita por causa de Deus, e não por causa de nossa omissão em proclamar cada verdade da revelação de Deus. Foi Deus quem não nos quis revelar todos os assuntos, mas o que ele revelou nas Escrituras é certo e confiável. Não posso deixar de reconhecer que esta não compreensão do homem é necessária nesta vida para ensiná-lo que tem limite e que depende de Deus. Calvino diz que a cada dia, ao lermos a Escritura, encontramos “... muitos passos obscuros, que nos convencem de nossa ignorância. Com um tal freio, Deus nos mantém na modéstia, distribuindo a cada um uma porção de fé, a fim de que até mesmo o melhor e mais douto esteja sempre pronto a aprender.” (Ibid.). Dt 29,29 deixa claro: “As coisas encobertas pertencem ao SENHOR, nosso Deus, porém as reveladas nos pertencem, a nós e a nossos filhos, para sempre, para que cumpramos todas as palavras desta lei.” Encerro esta explicação com mais uma frase de Calvino, que tem muito a nos ensinar: “... não esquadrinhemos nem queiramos saber o que o Senhor escondeu e não deseja que se saiba; e que não menosprezemos o que Ele nos manifestou e declarou com sua Palavra; para que, por um lado, não sejamos condenados por nossa excessiva curiosidade, e, por outro, por nossa ingratidão.” (III, XXI, 4).



TEXTOS CONSULTADOS



Bento XVI.  Santo Irineu de Lyon.  In: _____.   Os Padres da Igreja: de Clemente Romano a Santo Agostinho.  Tradução de Silva D. C. Reis.  São Paulo – SP: Paulus, 2012.  p. 25 – 30.  (Audiência geral de 28 de março de 2007).  [Coleção “Catequese do Papa”].

Calvin, John.  Commentary on the Epistle to the Galatians.  Albany, OR USA: AGES Software, 1998b.  1 CD-ROM.  197 p.  (The Ages Digital Library Commentary, Version 1.0).

Calvino, João.  A instituição da religião cristãTradução de Elaine C. Sartorelli et al.  São Paulo – SP: UNESP, 2009.  902 p.  [Tomo II, Livros III e IV].  (Edição integral de 1559).

Calvino, João.  As pastorais: I Timóteo, 2 Timóteo, Tito e Filemon.  Tradução de Valter G. Martins.  São Paulo – SP: Paracletos, 1998a.  379 p.

Hägglund, Bengt.  História da teologia.  Tradução de Mário L. Rehfeldt e Gládis K. Reehfeldt.  Porto Alegre – RS: Concórdia, 1973.  370 p.

Hoekema, Anthony.  Salvos pela graça: a doutrina bíblica da salvação.  Tradução de Wadislau G. Martins.  2. ed. [rev. ].  São Paulo – SP: Cultura Cristã, 2002.  287 p.

Ireneu de lyon.  Demonstração da pregação apostólica.  Tradução de Ari L. do V. Ribeiro.  São Paulo – SP: Paulus, 2014.  150 p.   (Coleção Patrística, nº 33).

Kistemaker, Simon.  Hebreus.  Tradução de Marcelo Tolentino.  São Paulo – SP: Cultura Cristã, 2003.  639 p.





Nota:

[1] “Of what avail was it to profess respect for the gospel, and not to know what it meant? With Papists, who hold themselves bound to render implicit faith, that might be perfectly sufficient; but with Christians, where there is no knowledge, there is no faith.” (Tradução minha).

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

HÁ CONTRADIÇÃO ENTRE PAULO E TIAGO NA QUESTÃO DA JUSTIFICAÇÃO?


Por Heber R. Bertuci.


Quando lemos Paulo e Tiago, parece que há uma contradição quando abordam a palavra justificação. Paulo ensina em Gl 2,16, que “... o homem não é justificado por obras da lei, e sim mediante a fé em Cristo Jesus, também temos crido em Cristo Jesus, para que fôssemos justificados pela fé em Cristo e não por obras da lei, pois, por obras da lei, ninguém será justificado.” Já Tiago, o meio irmão de Jesus, em Tg 2,21-24, enfatiza que “21 Não foi por obras que Abraão, o nosso pai, foi justificado, quando ofereceu sobre o altar o próprio filho, Isaque? 22 Vês como a fé operava juntamente com as suas obras; com efeito, foi pelas obras que a fé se consumou, 23 e se cumpriu a Escritura, a qual diz: Ora, Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça; e: Foi chamado amigo de Deus. 24 Verificais que uma pessoa é justificada por obras e não por fé somente.” Como conciliar Paulo, que diz que o homem não é justificado pelas obras da lei, com Tiago, que diz que o homem é justificado pelas obras e não apenas pela fé? Dentre as várias respostas que existem para esta pergunta, citarei três.

A primeira diz que Tiago está abertamente combatendo os ensinos de Paulo. Quem adota esta resposta, ou aceita a possibilidade de que a Bíblia tenha contradições, como, por exemplo, o faz um teólogo neoliberal de origem suíça, chamado Karl Barth (1886 – 1968), ou pode rejeitar o livro de Tiago como Escritura Sagrada. Rejeitar o livro de Tiago nunca aconteceu na História da Igreja, pois “... Tiago veio a ser reconhecida como canônico em todos os seguimentos da Igreja antiga, e, conquanto alguns tenham revelado certa hesitação, ninguém rejeitou totalmente o livro.” (Carson; Moo; Morris, 2002, p. 463). O mais famoso personagem que hesitou em reconhecer Tiago como parte da Bíblia foi o reformador Martinho Lutero (1483 – 1546). Ele desconfiava que havia contradição entre a doutrina de obras de Tiago e a doutrina da fé de Paulo. À vista disso, Lutero “... relegou a epístola a um papel secundário no Novo Testamento, junto com Judas, Hebreus e Apocalipse. Apesar disso, Lutero não exclui Tiago do cânon e, apesar de suas críticas, muitas vezes citou Tiago favoravelmente.” (Ibid., p. 463). Por que Lutero foi contrário à Epístola de Tiago? É provável que seja porque ele abraçou de tal modo a ênfase paulina sobre a justificação por meio da fé, que teve dificuldade com a ênfase nas obras que Tiago ensinava. Mas devemos deixar claro que Lutero não condenou Tiago, ele teve dificuldade com um aspecto de sua doutrina.

A segunda resposta ensina que Paulo e Tiago lidavam com diferentes problemas; desta forma, não havia contradição. Paulo enfrentava o problema da “... oposição de pessoas que confiavam na sua guarda da lei para a salvação (como ele mesmo havia feito durante seu período farisaico); assim, ele ensinava que a pessoa é justificada pela fé à parte das obras da lei – isto é, obras feitas como meios de comprar a salvação.” (Hoekema, 2002, p. 163). Desejando que os cristãos não voltassem ao judaísmo, Paulo combateu de modo firme uma prática judaica muito forte em seu tempo: o ensino de que as obras eram necessárias para o cumprimento da lei, para que se adquirisse a verdadeira piedade. Já Tiago “... estava combatendo pessoas inclinadas a pensar que uma crença meramente intelectual nas verdades do Cristianismo era suficiente para a salvação.” (Ibid., p. 163). Tiago criticava uma fé apenas de palavras, não de atos; criticava aqueles que só queriam debater Cristianismo, que só se interessavam em teorias, mas não em prática. Percebemos, portanto, que Paulo e Tiago tratavam de duas questões opostas que mereciam ênfases diferenciadas da parte deles.

A terceira resposta é que Paulo usa a expressão obras da Lei e ensina que não somos justificados pelas obras da Lei do Antigo Testamento. Tiago usa apenas a palavra obras e ensina que uma fé que não é demonstrada por obras da fé não é verdadeira. Com esta explicação, a conclusão é que quando Tiago fala que Abraão foi justificado pelas obras porque colocou seu filho sobre o altar em Gn 22, ele não nega que Abraão foi justificado em um tempo anterior, quando a Escritura disse em Gn 15,6 que “Ele creu no SENHOR, e isso lhe foi imputado para justiça.” A ênfase de Tiago é que foi pelas obras que a fé de Abraão se consumou. Em Tg 2,22, lemos que “... a fé cooperou com as suas obras [de Abraão] e que, pelas obras, a fé foi aperfeiçoada”. Então, o ensino de Tiago está de acordo com Paulo, por exemplo, no texto de Gl 5,6: “Porque, em Cristo Jesus, nem a circuncisão, nem a incircuncisão têm valor algum, mas a fé que atua pelo amor.” Nesse texto, Paulo diz que a fé deve ser demonstrada e exercida em amor, e assim concorda com Tiago que os crentes devem exteriorizar por atos a sua fé. Para nós estes dois autores inspirados ensinam que não devemos cair no extremo de pensar que uma fé apenas de palavras já é suficiente diante de Deus. É preciso viver e testemunhar nossa fé no dia a dia, sendo benção nas mãos de Deus.



TEXTOS CONSULTADOS


Carson, Donald. A.; Moo, Douglas J.; Morris, Leon.  Introdução ao Novo Testamento.  Tradução de Márcio L. Redondo.  São Paulo – SP: Vida Nova, 2002.  556 p.

Hoekema, Anthony.  Salvos pela graça: a doutrina bíblica da salvação.  Tradução de Wadislau G. Martins.  2. ed. [rev. ].  São Paulo – SP: Cultura Cristã, 2002.  287 p.


GN 15,6 - ABRAÃO CREU EM DEUS E ISSO LHE FOI IMPUTADO PARA A JUSTIÇA



Por Heber R. Bertuci.


O texto de Gn 15,6 nos ensina que Abraão foi justificado por sua fé. O texto diz que Abraão “... creu no SENHOR, e isso lhe foi imputado para justiça.” Há duas palavras importantes na interpretação deste verso. A primeira delas é o verbo crer: Abraão creu no Senhor. O verbo hebraico usado aqui é o primeiro em importância no Antigo Testamento para descrever o ato de fé. É o verbo he’emin, que significa: considerar algo como estabelecido ou como verdadeiro. Com este verbo aprendemos uma grande lição: a fé bíblica “... é algo seguro, uma certeza, em contraste com conceitos modernos de fé que falam de algo possível, que se espera ser verdadeiro, ainda que não seja certo.” (Harris; Archer, Jr.; Waltke, 2005, p. 85). Portanto, quando Moisés escreve que Abraão creu em Deus, ele quis afirmar que Abraão tinha plena convicção que Deus existia e que podia cumprir as suas promessas. A segunda palavra importante do texto é imputar. Na língua hebraica é o verbo hashav, que tem uma gama de significados, cujo principal é contar. Em textos como Gn 15,6, este verbo significa creditar, isto é, colocar algum valor na conta de alguém. O mesmo sentido encontramos em Nm 18. No contexto vemos que se os levitas “... não cultivavam nem criavam gado, como as demais tribos, [eles] deveriam apresentar dízimos e ofertas de tudo o que recebiam; [portanto,] a apresentação fiel que faziam dos dízimos de seus salários lhes era reputada como se houvessem apresentado grãos da eira.” (John E. Hartley In: VanGemeren (Org.), 2011, p. 304, v. 2). Por isso, em Nm 18,27, lemos: “Atribuir-se-vos-á a vossa oferta como se fosse cereal da eira e plenitude do lagar.” O verbo atribuir-se-vos-á é o mesmo usado para imputar em Gn 15,6, e indica que Deus ia atribuir aos levitas a sua oferta dos dízimos, e assim eles seriam aceitos diante dele. Em Gn 15,6, Abraão creu em Deus e esta fé lhe foi imputada ou colocada em sua conta como justiça. Deus atribuiu a Abraão um valor moral e espiritual por causa da sua fé. Isto foi importante porque demonstrou que Abraão estava, de fato, em um correto relacionamento com Deus; ele estava trilhando o rumo certo.
O apóstolo Paulo, no Novo Testamento, cita algumas vezes Gn 15,6 para comprovar a doutrina da justificação pela fé somente. Para citar um exemplo, em Gl 3,6-7, lemos: “ 6 É o caso de Abraão, que creu em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça. 7 Sabei, pois, que os da fé é que são filhos de Abraão.” O texto diz que Abraão foi justificado por sua fé e que todos os que imitam autenticamente a fé de Abraão são também. Aqui nós entramos na continuidade dessa história. Se nós crermos em Jesus Cristo como o enviado de Deus, seremos justificados por nossa fé, seremos aceitos por Deus. Esta doutrina da justificação é tão importante que a Reforma Protestante do século XVI encontrou nela a entrada do edifício da teologia de Paulo. (c.: Ridderbos, 2004, p. 11 – 12). Tanto Martinho Lutero (1483 – 1546) como João Calvino (1509 – 1564) reconheceram que a justificação pela fé somente é o critério máximo para toda a doutrina da salvação no Novo Testamento, pois aponta para Deus como o nosso justificador, independentemente de nossas obras. Aqui cabe a pergunta: o que é justificação? No conceito reformado, “A justificação pode ser definida como o ato gracioso e judicial de Deus pelo qual ele declara justos a pecadores crentes, na base da justiça de Cristo que lhes é creditada, perdoando seus pecados, adotando-os como filhos e dando-lhes direito à vida eterna.” (Hoekema, 2002, p. 172). Vemos com esta definição que em primeiro lugar, a justificação é um ato de Deus em que ele justifica os crentes por sua graça, que é seu favor imerecido. A justificação é também um ato judicial de Deus porque ele age como um juiz que justifica o réu que está no tribunal. Como Deus o justifica? Ele o declara justo na base da justiça de Cristo que lhe é creditada. A fé e a obediência de Jesus são imputadas nos crentes, são colocadas em sua conta que estava vazia diante de Deus. Isso significa que nós, os crentes, temos crédito diante de Deus por causa da obra de Jesus Cristo.
Mas, que obra Jesus fez por nós? Em síntese, a obra de Cristo se resumiu na palavra obediência. A teologia reformada divide a obra de obediência de Cristo em duas. A primeira é chamada de obediência passiva, na qual ele, em uma reunião na eternidade, aceitou de Deus Pai a responsabilidade de ser nosso Mediador e Salvador. Para citar apenas um exemplo, quando Jesus conversou com a mulher Samaritana, em Jo 4,34, ele disse: “A minha comida consiste em fazer a vontade daquele que me enviou e realizar a sua obra.” Aqui Jesus diz claramente que Deus o enviou para realizar a sua redenção. A segunda obra é chamada de obediência ativa, na qual Cristo voluntariamente prometeu cumprir toda a Lei de Deus enquanto vivesse aqui na Terra. Em Jo 10,17-18a, por exemplo, Jesus diz: 17 Por isso, o Pai me ama, porque eu dou a minha vida para a reassumir. 18 Ninguém a tira de mim; pelo contrário, eu espontaneamente a dou.” Estes versos nos ensinam que Jesus não obedeceu “... apenas para si mesmo, mas para nós. Quando nós o aceitamos como nosso Salvador, a sua obediência ativa significa que fomos positivamente justificados diante de Deus. Estamos cobertos pela justiça de Jesus Cristo.” (Schaeffer, 2003, p. 19). Esta justiça nos dá três frutos: o perdão dos nossos pecados, a nossa adoção como filhos de Deus e o nosso direito de ter a vida eterna. Aqui precisamos refletir: o que estamos esperando para abraçar esta fé que nos justifica? Tendo fé nós temos amizade com Deus; não a tendo, nós perdemos esta preciosa amizade de Deus.


TEXTOS CONSULTADOS


Harris, R. Laird; Archer, Jr., Gleason L.; Waltke, Bruce K.  Dicionário internacional de Teologia do Antigo Testamento.  Tradução de Márcio L. Redondo, Luiz A. T. Sayão e Carlos O. C. Pinto.  São Paulo – SP: Vida Nova, 2005.  1789 p.
Hoekema, Anthony.  Salvos pela graça: a doutrina bíblica da salvação.  Tradução de Wadislau G. Martins.  2. ed. [rev. ].  São Paulo – SP: Cultura Cristã, 2002.  287 p.
Ridderbos, Herman.  A vinda do reino.  Tradução de Augustus N. Lopes e Minka S. Lopes.  São Paulo – SP: Cultura Cristã, 2010.  432 p.
Schaeffer, Francis A.  A obra consumada de Cristo: a verdade de Romanos 1 – 8.  Tradução de Gabrielle G. Bretzke.  São Paulo – SP: Cultura cristã, 2003.  255 p.
VanGemeren, Willem A. (Org.).  Novo dicionário internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento.  Tradução de Afonso T. Filho et al.  São Paulo – SP: Cultura Cristã, 2011.  v. 2, 1150 p.